segunda-feira, março 06, 2006

Reeleger é absolver

Reeleger é absolver
Mauro Chaves


Vamos definir os termos: perdoar é relevar a culpa, absolver é negar a culpa. Quem perdoa reconhece a responsabilidade do culpado (ou a culpa do responsável), mas o dispensa de pena, por compaixão ou pela consideração de que "errar é humano". Mas quem absolve admite a improcedência das acusações, a injustiça da culpa imputada a um inocente.

Assim, perdoar é livrar da punição, enquanto absolver é impedir a condenação. Agora, o perdão supõe correção, emenda, mudança de comportamento e sobretudo negação da oportunidade de reincidência. Já a absolvição significa uma aprovação de conduta e, em conseqüência, um convite à sua repetição - pois por que mudar o que está certo, por que impedir que se faça de novo aquilo que se fez corretamente?

Eis, pois, que reeleger um governante não é perdoá-lo por suas falcatruas - próprias, de subordinados ou agregados -, mas sim absolvê-lo de todas as culpas (suas e dos seus) e admitir que ele faça tudo de novo. Se se tratasse de perdão, o maior benefício a ser feito a um governante faltoso seria conceder-lhe o direito de permanecer em liberdade (mesmo condicional ou vigiada), mas nunca o de continuar exercendo o mesmo poder para praticar as mesmas maracutaias.

Em nosso presente momento ético-eleitoral, reeleger é negar que tenha havido a compra de apoio político, de consciências e de votos. É contestar todas as evidências de corrupção, de desvios de recursos de estatais e de fundos de pensão,de superfaturamento de obras públicas, de burlas de licitações, de lavagens de dinheiro, de transações de numerário em balcões de agências bancárias suspeitas, de transporte de dinheiro vivo em pacotes, malas ou cuecas.

Reeleger - em nossas atuais circunstâncias político-governamentais - é aceitar, no fundo, a plena impunidade, a doce compensação do crime praticado, o desrespeito sistemático às leis vigentes, a locupletação privada proveniente do assalto às verbas públicas. É aceitar o trafico de influência - e o enriquecimento precoce dos que têm a filiação como maior qualidade técnico-empreendedora.

Reeleger é absolver os que propiciaram uma quebra calamitosa de valores, uma desmontagem completa de normas de civilidade no convívio social, uma desmoralização acachapante do esforço pessoal de aprendizado, uma liquidação acintosa dos critérios de promoção e desenvolvimento, segundo o mérito de cada qual - e não as espúrias conexões, etc. e tal.

Reeleger é absolver os responsáveis pelo peso de uma carga tributária sufocante, esterilizante e imoral, porque sem correspondência alguma com a qualidade dos serviços públicos prestados aos cidadãos. Reeleger é absolver os empedernidos mantenedores dos juros mais estratosféricos já praticados no planeta, é concordar com o estrangulamento cruel da atividade produtiva - especialmente dos pequenos e médios -, é aceitar, com tranqüilidade, o fato de os "spreadadores" crescerem ao nível obsceno de 80% ao ano - sem procurar entender por que o grande dramaturgo Bertolt Brecht já se fazia a pergunta: "Qual o maior crime, assaltar um banco ou fundar um banco?"

Reeleger é absolver os que têm jogado fora a maior das oportunidades propiciadas pela expansão e desenvolvimento do mundo, é aceitar um nível de crescimento ridículo que só nos situa à frente dos que sempre foram os mais miseráveis do continente, é continuar engolindo uma estupidez diplomática que dá tudo e não recebe nada em volta, sacramentando uma política de bajulação esperançosa de resultados (que nunca chegam), com base em cessões crônicas (nossas) respondidas por rejeições agudas (dos outros).

Reeleger é concordar, em gênero, número e grau com a esmola oficial - de objetivos claramente eleitorais - ofertada a milhões de famílias, o que tanto humilha quanto vicia, retirando de mentes desinformadas e deseducadas o que lhes resta de entendimento e sentimento quanto à digna conexão entre o esforço do trabalho, da produção, e a respectiva remuneração, capaz de prover,
com autonomia, o justo alimento familiar - e o desenvolvimento, pela via insubstituível da educação e da cultura.

Reeleger é absolver os responsáveis pelo descontrole oficial e continuado das ações de exploração predatória e devastação de nosso meio ambiente, é dar apoio aos que pouco ou quase nada fazem para guarnecer nossas fronteiras e ainda não descobriram como implementar um sistema de combate eficiente ao crescimento avassalador do uso de drogas entre nossos jovens - o que, também, tem tudo que ver com a quebra de valores éticos fundamentais, que das esferas do poder desce ao tecido social para esgarçá-lo, de forma inédita em nossa Historia, visto que nada mais parece valer, moralmente, coisa alguma ante a impunidade irremovível da grande cambada de ladrões.

Reeleger é absolver os que não parecem muito preocupados com o fato de famílias terem de fugir para o exterior, submetendo-se a um exílio revoltante para livrar seus filhos de ameaças, porquanto tiveram a suprema coragem de não aceitar a versão absurda de "crime comum" que teria vitimado o ilustre parente assassinado, em episódio que revelou, com tragicidade indescritível - mas tranqüilamente aceitável por altas esferas -, a que ponto podem chegar os enlambuzados de corrupção na conquista e preservação do poder.

Reeleger, enfim - nas atuais circunstâncias -, é desistir de vez dos escrúpulos, da ética, da moral, do freio à ambição a qualquer preço, do apreço pela coisa pública, da majestade do cargo presidencial, do profundo respeito pelo trabalho, pelo idioma, pela cultura e pela democracia.


Mauro Chaves é jornalista, advogado, escritor, administrador de empresas e produtor cultural.